segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Steve Biko


No ano passado alinhei aqui umas palavras em memória da brutal repressão da polícia sul-africana no Soweto que redundou na morte de dezenas de crianças negras. Nesse mesmo texto, que pretende apenas manter a memória viva, falei também em Steve Biko, o presidente honorário da Convenção dos Negros que morreu a 6 de Setembro de 1977 vítima do selvático espancamento com que o regime do "apartheid" o calou para sempre.

A história deste homem - que a wikipédia conta em pinceladas muito leves - merece ser contada e recordada. Como, de resto, todas as histórias de todos os que lutaram e lutam pela liberdade.

À passagem dos 30 anos da morte de Biko recordo o discurso feito, em 1997, pelo então presidente Nelson Mandela. Uma leitura importante que encontrei aqui:


Ntsiki Biko e membros da família Biko;

Distintos convidados;

Senhoras e Senhores,

Estamos hoje aqui reunidos para prestar homenagem a um dos maiores filhos da nossa nação, Stephen Bantu Biko. A sua esperança na vida, e a sua vida de esperança são retidas nas vibrantes palavras: "Com tempo, estaremos em posição de conceder à África do Sul a melhor prenda possível - uma face mais humana."

Estamos aqui reunidos para reafirmar o nosso compromisso com este ideal; a esperança de um gigante, legado à nossa terra por uma região que através dos séculos gerou homens e mulheres de enormes qualidades, líderes que se submeteram a provas nas mais difíceis condições. Uma região que fomentou uma tradição de luta incessante e inflexível desde os dias de Hintsa; que passou por Enoch Sontonga, Vuyisile Mini, Matthew Goniwe, Ford Calata, Sparrow Mkhonto, por Griffiths e Victoria Mxenge - para citar apenas uns poucos.

O evento de hoje é uma demonstração da nossa decisão de preservar as memórias dos nossos heróis e heroínas: de manter viva a chama do patriotismo que arde nos corações e mentes de pessoas como Steve Biko; de resgatar o compromisso de dar uma face mais humana a uma sociedade por séculos espezinhada pela bota da desumanidade.

Nos elogios aos que partiram, os trabalhos dos vivos muitas vezes têm pouca relação com a realidade. Mas o que se disse sobre Steve Biko, o que passou através dos muros de Robben Island e de outras prisões através dos boatos políticos, passou pelo exame do tempo. Que ele era realmente um grande homem que se manteve de cabeça e ombros acima dos seus pares comprova-se não só pelos testemunhos dos que o conheceram e trabalharam com ele, mas também pelos frutos das suas iniciativas.

A história requereu os esforços de Steve Biko numa época em que o pulso político do nosso povo tinha enfraquecido pelos desterros, pelas prisões, os exílios, os assassinatos e as expulsões. A repressão tinha varrido o país de toda organização popular visível. Mas a cada viragem da história o apartheid estava destinado a gerar a resistência; estava votado a trazer à vida as forças que iriam garantir a sua morte.

Os ditames da História trazem para a primeira linha o tipo de líderes que agarram o momento, que interpretam os desejos e as aspirações dos oprimidos. Steve Biko era um desses, um produto do seu tempo; um orgulhoso representante do redespertar de um povo.

Foi um tempo em que a maré da valorosa luta da África e a sua libertação, avançando nas nossas próprias fronteiras, estava a consolidar o orgulho negro através do mundo e a provocar a determinação de todos os que eram oprimidos a tomar o destino nas suas próprias mãos.

É também muitas vezes o destino de uma liderança ser incompreendida; os historiadores, os académicos, os escritores e os jornalistas reflectem as grandes vidas de acordo com os seus próprios cânones. Isto é ainda mais evidente num país onde os intérpretes têm recursos muito maiores para publicar opiniões relacionadas com a procura da dignidade e da identidade nacional.

Desde o início, a consciência negra articulou-se com uma "atitude, um modo de vida". De várias formas e sob vários nomes, antes e depois desse momento, esta atitude e este modo de vida correram nas veias de todas as forças motivadoras da luta; acenderam a determinação tanto dos líderes quanto das massas.

A ideia-chave da consciência negra era forjar o orgulho e a unidade entre os oprimidos, para derrotar a estratégia de dividir para reinar, para criar orgulho entre a massa do nosso povo e a confiança na sua capacidade de libertar-se da opressão.

E, por seu lado, o Conselho Nacional Africano, desde os primeiros anos dos 70, acolheu a consciência negra como parte das forças genuínas da revolução. Compreendeu que estava a dar forma organizativa ao levantamento popular de todos os grupos oprimidos da nossa sociedade. Acima de tudo, o movimento de libertação sustentou que, na luta - na acção de massas, na organização clandestina, nas acções armadas e na mobilização internacional - o povo iria mais prontamente desenvolver consciência do seu orgulho de ser, da sua igualdade com qualquer outro, da sua capacidade de fazer história.

É ao mesmo tempo natural e motivo de orgulho que a esmagadora maioria de jovens lutadores que afiaram os dentes e formaram o seu ser político no Movimento de Consciência Negra sejam hoje líderes por direito próprio nos governos nacional e provinciais, no serviço público, no Judiciário e nas estruturas de segurança e de espionagem do governo democrático. Eles podem ser encontrados nas profissões, nos negócios, no movimento sindical e noutras estruturas da sociedade civil - estrategicamente colocados para deixar a sua marca na nova ordem que está a ser construída.

A atitude e o modo de vida que Biko e os seus camaradas defendiam são amplamente necessários hoje. São relevantes porque nos definimos como uma nação africana num continente africano. São pertinentes na nossa vontade de afastar a tentação de nos tornarmos clones de outros povos.

Uma nova atitude e modo de vida são necessários nos nossos esforços para mudar a condição humana. Mas só podem prosperar se tivermos sucesso nesse esforço comum de construir uma vida melhor. São necessários quando nos empenhamos em trazer todo o poder para as mãos do povo; quando procuramos moldar novos meios de comunicação social que apreciam as condições e as aspirações da maioria; quando mudamos a estrutura da propriedade da riqueza; quando construímos um novo ethos para os nossos ideais e, ao mesmo tempo, a especificidade das nossas condições concretas.

Apesar de Steve Biko ter desposado, inspirado e promovido o orgulho negro, ele nunca fez da negritude um fetiche. No fim do dia, como ele mesmo dizia, aceitar a própria negritude é um importante ponto de partida: um alicerce importante para se entregar à luta. Hoje, tem de ser um alicerce para a reconstrução e o desenvolvimento, para um esforço humano comum para pôr fim à guerra, à pobreza, à ignorância e à doença.

Um dos grandes legados da luta que Biko travou - e pela qual morreu - foi a explosão do orgulho entre as vítimas do apartheid. O valor que a consciência negra pôs na cultura repercutiu através da nossa terra; nas nossas prisões; e entre as comunidades no exílio. O nosso povo, que antes era forçado a olhar para a Europa e para a América para alimentar a sua criatividade, virou os olhos para a África.

Falo de cultura e criatividade porque, como a verdade, elas estão a resistir. Trata-se assim de uma feliz coincidência da História que Steve Biko seja homenageado por uma estátua, esculpida em bronze por Naomi Jacobson, que podemos dizer que é a sua distante conterrânea. Também dá alegria saber que o custo financeiro da criação da estátua tenha sido assumido por pessoas do ramo criativo, incluindo Denzel Washington, Kevin Kline e Richard Attenborough, que serão lembrados pelo filme sobre Biko, "O Grito da Liberdade". Outro contribuinte é Peter Gabriel, cuja música "Biko" ajudou a manter viva a chama da solidariedade anti-apartheid. Esta colaboração de artistas britânicos e americanos dá um testemunho eloquente do internacionalismo de Steve Biko.

Ao falar de "uma face mais humana", Steve Biko estava a rejeitar a brutalidade de homens que se comportavam como possessos, na sua defesa da injustiça. Foram estes brutos que ele enfrentou sem titubear; e a história verdadeira dos seus últimos momentos que só agora começamos a investigar.

Num momento em que a Comissão pela Verdade e Reconciliação abre o caminho em direcção à verdade, todos somos forçados a sofrer com o preço em termos de justiça que as vítimas têm de pagar. Mas todos podemos retirar consolo da convicção de que as meias-verdades de um baixo inquiridor não podem nem devem esconder a culpabilidade dos comandantes e dos líderes políticos que deram as ordens. Porque sabemos que o que eles desesperadamente procuravam retirar-lhe era o seu contacto com a liderança do movimento de libertação. Com o tempo, a verdade virá ao de cima!

Naquelas horas difíceis, vinte anos atrás, o infortúnio roubou à nação um dos seus jovens mais dotados, cuja contribuição à nossa causa teria sido ainda mais imensa. Mas o nosso compromisso à unidade pela qual Steve Biko lutou continua a guiar-nos no momento em que nos damos as mãos em acções práticas para alterarmos o legado da opressão.

Significa trabalhar juntos, governo em cada esfera e todos os sectores da sociedade, para trazer prosperidade à província, ao país e ao continente que o abriga.

Significa que todos nós ajudemos a levar a África do Sul para além do limiar da grandeza à qual aspira. Que isso será conseguido por cada um de nós, respeitando-nos a nós próprios em primeiro lugar, e, em contrapartida, respeitando a humanidade em cada um de nós. Significa uma atitude e um modo de vida que aprecia a alegria no trabalho honesto de criar uma nova sociedade. Com tempo, precisamos conceder à África do Sul o maior presente - uma sociedade mais humana.

Estamos confiantes de que ao forjar uma nova e próspera nação estamos a continuar a luta pela qual Steve Biko pagou o sacrifício supremo.

Esperamos que ao desvelar esta estátua, renomear a ponte e declarar a sua casa de Gisnsberg um monumento nacional, estejamos a dar a nossa humilde contribuição para imortalizar a sua vida.

Muito obrigado!

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