quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Reflexões avulsas sobre uma entrevista

A entrevista com que Ferro Rodrigues quebra, hoje, na “Visão”, um silêncio de três anos, depois da sua demissão de secretário-geral do Partido Socialista (PS), justificaria uma cuidada análise por parte de quem pensa a Esquerda Socialista, quase nada pelas coisas “bombásticas” que possam ali ser lidas, muito pelo que é simplesmente sugerido ou serenamente afirmado.

Tenho Ferro Rodrigues em boa conta humana e política, trata-se de alguém que, como outros camaradas com percurso semelhante, caso de Jorge Sampaio, por exemplo, soube manter-se fiel a si próprio e às ideias-base que sempre defendeu. Discordo de muitas delas, muitas mesmo, mas ouço-o/leio-o atentamente: afinal de contas, se há rendimento mínimo em Portugal – com tudo o que isso significa, em termos de alcance político estratégico – a ele se deve; mais, não consigo esquecer a mais clara e evidente tentativa de assassinato político a que já pude assistir em directo.

Por tudo isto – e pelo que aqui não cabe – ficam algumas reflexões avulsas.


“Mesmo com o advento de vários governos de esquerda a nível europeu, percebeu-se que, sem a resolução do défice orçamental, nada é possível. Nem sequer manter um Estado Social com capacidade de resposta”.
No seu tempo, ele próprio o admite, a lógica de raciocínio político era outra. Não se percebe o que é que Ferro Rodrigues percebeu, o que é que perceberam os ditos “governos de esquerda a nível europeu”, não se percebe que “mudanças brutais” aconteceram, em três anos e meio, que levaram a rever um conceito e uma orientação política estratégica. Ficará, para sempre, a dúvida sobre a concomitante falta de capacidade de resposta do Estado Social face à secundarização do problema do défice orçamental: é que, lendo tudo o que tem sido escrito nesta matéria, não há nenhum estudo credível que o sustente – apenas considerações tão válidas e sérias como a que aqui é expressa.


“Aquilo que se passa em Portugal não é muito diferente do que acontece em Espanha, com uma maioria de esquerda, ou em Itália, com um Governo que integra os comunistas. No imediato, os países têm de resolver o problema de viver num mundo globalizado e, depois, voltarão a colocar as alternativas em termos ideológicos”.
Nada de mais estranho e sem grande sentido, sobretudo porque vindo de um homem com formação política na área da Esquerda Socialista. Não só é muito diferente o que acontece em Espanha do que o que se passa em Portugal – Zapatero é, também ele, um neoliberal ao estilo de Sócrates, mas as medidas sociais do seu Governo têm um impacto incomparavelmente superior às de cá, eventualmente na proporção da dimensão física dos dois países – como o anátema do “mundo globalizado” soa, cada vez mais, a desculpa dos incapazes. Em síntese, primeiro arrumamos a casa, e depois pensamos como a gostaríamos de ter. E se, depois, quando voltar a discussão ideológica, já não quisermos a casa arrumada tal como então estiver?


“Quem não reforma, não aguenta. Não é sustentável pensar que os sistemas de educação, saúde e segurança social se podem manter com as regras de há 30 anos. Hoje, não há esquerda se não for reformista”.
Regras com 30 anos de vigência quase nunca em quase nada se poderão manter, mas é cada vez mais espantoso o espaço que ganha a tendência reformista entre o que dista do pensamento social-democrata e os restantes quadrantes à sua esquerda. Ferro Rodrigues, a consciência de esquerda de um certo PS à esquerda, já só acredita na esquerda reformista. Também ele! Como se os portugueses não soubessem muitíssimo bem o que é essa esquerda reformista, e precisamente na educação, na saúde e na segurança social… Maria de Lurdes Rodrigues, Correia de Campos e Vieira da Silva já entraram para o livrinho dos ministros que subtraíram alguma coisa à felicidade de se ser português.


“Portugal vive um momento difícil, de transição. Pedem-se sacrifícios a uma parte importante da classe média e a uma determinada geração, que tem entre 45 e 65 anos. Ou seja, a geração do 25 de Abril e da consolidação da democracia. Se esses sacrifícios são pedidos, é indispensável que isso se faça com menos arrogância e mais humildade”.
Decididamente o homem não quer ser mal-criado, ingrato com quem o nomeou embaixador na OCDE, mas os pedidos, que José Sócrates devia ler, são certeiros: “menos arrogância e mais humildade”.


“A Europa precisa de estabilidade constitucional. E isso não pode ser posto em causa por motivos internos de cada país. Os países onde a possibilidade de ganhar o “não” é forte não vão fazer o referendo”.
Numa Europa de democracias, a democracia não é exercida…