continuando de visita pela memória, ao meu passado recente. pelo Zorba
Zorba, o cão que morreu de amor e saudade
Zorba nasceu no mato e aí cresceu acarinhado pelos tropas de uma companhia portuguesa em Angola, no tempo colonial. Aprendeu a viver ao lado e do lado dos militares e desenvolveu particularidades que faziam dele um cão respeitado, até pelo cruzamento de raças que faziam ele um bicho não muito grande, do tipo pastor alemão, mas com a força de um leão da Rodésia: uivava religiosamente à alvorada e ao recolher, rosnava e, sempre que podia, mordia nos negros angolanos, e passava o resto do tempo deitado, com o olhar posto lá longe, meio triste.
No fim da comissão militar viajou para Luanda com os seus companheiros de sempre, que sabiam carregar um problema, pois ninguém assumia que garantiria o destino do cão. Mas um familiar de um soldado que preparava as malas para regressar ao “puto” albergou o animal e a demanda foi rápida.
Nos dez anos que se seguiram, Zorba manteve o estilo mas teve uma vida diferente. Estava longe do quartel mas nunca falhou a hora do toque, encostou ao muro da casa vários negros aventureiros que se defendiam das investidas com as suas bicicletas e motorizadas, numa demonstração de racismo sem explicação razoável, e dormia, aterrava o focinho no chão e dormia, dormia talvez embalado pelos sonhos do mato, das corridas lentas e cautelosas dos tempos da guerrilha.
Embora amarrado na frontaria da casa a uma longa corrente de prender vacas e bois, sempre que lhe apetecia desatava os grossos elos de ferro com meia dúzia de puxões e lá ia ele tirar as vistas de miséria. Ninguém sabe por onde andava, apenas que regressava uma, duas semanas depois, magro e com um olhar mais tranquilo, eventualmente aliviado das usuais tensões animais. Deixava-se amarrar à corrente entretanto reparada, dócil, comia, bebia e voltava a dormir.
Na casa que também passara a ser sua, Zorba não tolerava fosse quem fosse que, por hipótese, falasse mais alto que os seus novos donos. Atravessava o corpo à porta da entrada, vigilante, e à saída, veloz, rosnava e ferrava os fundilhos do prevaricador. Com a brincadeira ainda mandou para o hospital um vizinho mais apaixonado por um clube de futebol diferente do dono da casa que ousou bater com a mão na mesa.
Também atravessava o corpo à porta da entrada sempre que a dona sofria mais com as suas enfermidades. Aflita com falta de ar e com o coração fraco, a mulher deitava-se numa espreguiçadeira, no varandim da entrada, porta aberta, e Zorba montava guarda. Assim foi noites e noites a fio, cacimbasse ou não, fizesse chuva ou não, com ou sem calor.
Cada vez mais doente, a dona teve de viajar para local mais recatado, na Europa, onde os médicos e a família a pudessem acudir em caso de necessidade. E, uma noite, dia 25 de Junho de 1975, o coração da mulher, muito fraco, recusou-se a bater mais. Nessa mesma noite, Zorba desatou a uivar de forma imprevista. A triste notícia ainda não tinha chegado pelo telefone já o cão uivava estranhamente, fora de horas e sem interrupção. Nessa mesma noite, Zorba deixou de se alimentar para todo o sempre, como se a greve de fome marcasse o mais veemente protesto contra a infelicidade que também o acometera. Zorba morreu de amor e saudade duas semanas depois, magro como um cão, rouco, com o olhar posto lá longe, profundamente triste.
Um comentário:
Emocionaram-me. O Zorba e tu.
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